O ex-piloto de avião Antonio Maranhão Calmon foi diagnosticado com ataxia de Friedreich, uma doença conhecida como morte em vida. Em entrevista divulgada pelo UOL nesta quarta-feira (24), o homem de 47 anos descreveu a luta para conseguir um diagnóstico certeiro para a enfermidade e contou como é seu dia a dia.

Apesar dos primeiros sinais da doença se manifestarem durante a infância do paciente, no caso do brasiliense, isso só veio a acontecer na fase adulta. A ataxia de Friedreich provoca degenerações progressivas de regiões do sistema nervoso central, afetando a parte neuromuscular. Segundo Antonio, a confirmação só veio aos 37 anos, depois de vários diagnósticos errados. “Os sinais mais significativos se deram depois dos 30 anos”, relembrou.

“Sempre fui uma criança muito ativa e quando tinha por volta de 10 anos, algumas pessoas da minha família notaram que eu tinha dificuldade de andar em linha reta. Quando brincava com meus amigos na rua, era o que corria menos, o que tinha menos agilidade. Naquela época, todo mundo achava que isso era só uma característica minha. Ninguém pensou ser sintoma de uma doença. E fora que era algo bem ameno, nada visível para quem não conhece a AF”, continuou.

Anos depois, ele conseguiu realizar o sonho de se tornar piloto de avião. Contudo, a carreira não durou muito tempo por causa dos problemas de saúde. “Aos 25, levei o primeiro susto. Com essa idade, perdi pela primeira vez a minha carteira de piloto porque, na avaliação anual de saúde que era obrigatório fazer, fui diagnosticado com arritmia cardíaca. A suspeita era de síndrome de Wolff-Parkinson-White”, explicou. Antonio precisou fazer uma série de exames para provar que não tinha nenhum problema no coração e, enfim, conseguiu voltar a voar.

Antonio trabalhou como piloto de avião (Foto: Arquivo Pessoal)

Sintomas e diagnóstico

Apenas 10 anos após esse episódio, os sintomas da AF realmente começaram a se manifestar e prejudicar seu desempenho no trabalho. “A primeira coisa foi que fiquei com a voz arrastada, outra característica da ataxia. Isso foi bem complicado na minha profissão, pois as pessoas pensavam que eu estava embriagado. Fui acusado diversas vezes por passageiros e membros da tripulação de ter bebido. Como estava em uma posição de liderança – era comandante –, sendo responsável por mais de 200 vidas em cada voo, isso se tornou bastante complicado”, lamentou ele, explicando que os novos exames de rotina apontaram alterações consideráveis.

Afastado do trabalho, Antonio focou em descobrir seu diagnóstico. “Segui indo a médicos e, em uma consulta no Sarah Kubitschek, em Brasília, me pediram um exame neuromolecular e foi só então que soube que tinha AF. Quando recebi o diagnóstico, parecia que era o fim do mundo, foi como uma sentença de morte. E de certa forma é, pois essa doença é conhecida como morte em vida, porque o lado cognitivo fica intacto, mas o corpo padece. É o contrário do Alzheimer”, descreveu.

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Nova fase e tratamento

Atualmente com 38 anos, Antonio está aposentado do trabalho e morando em Portugal com a namorada, que também tem a doença. Hoje ele não consegue mais correr ou caminhar sem apoio: “Sinto muita fadiga, que é um dos principais sintomas da doença, e é algo bastante debilitante, tenho dificuldade de equilíbrio e perda de coordenação motora fina e caio com facilidade”. Mesmo assim, ele decidiu se inscrever em um curso de mergulho. “Na água meus sintomas não são tão fortes e é uma forma de usar as habilidades que adquiri ao longo da vida”, justificou.

O homem também buscou tratamento nos Estados Unidos e tem notado melhoras em sua condição. “Diminuição da fadiga e melhora na fala, no andar e na coordenação. Ficou comprovado cientificamente, no meu caso, uma redução de 90% na evolução. Isso é um alívio, pois estava condenado a perder minha mobilidade e independência. Hoje, posso dizer que tenho uma boa vida. Moro em Portugal há dois anos e vivo com a minha namorada, que também tem ataxia de Friedreich e está em cadeira de rodas de forma permanente”, analisou Antonio. O casal se mantém sem ajudas externas e o ex-piloto atua como paciente e cuidador.

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Ele continuou: “Em relação aos cuidados médicos, além de tomar o omaveloxolona e óleo de cannabis para me ajudar com a insônia, passo em consulta com neurologista a cada quatro meses, e me consulto com outros especialistas, como oftalmologista, otorrinolaringologista, pois a doença também afeta visão, audição e deglutição, e cardiologista. E faço fisioterapia três vezes na semana. Aprendi a aceitar o que a vida me deu e não tenho raiva da minha condição, da doença. Entendi que não devo criar mais limitações além das que já tenho”.

Atualmente, ex-piloto pratica mergulho (Foto: Arquivo Pessoal)

A doença

A ataxia de Friedreich é uma doença rara de base genética. Segundo a Fara (Friedreich’s Ataxia Research Alliance), cerca de 50 mil pessoas no mundo são acometidas pela patologia, sendo o Brasil o segundo país com mais casos (730 casos), apenas atrás dos Estados Unidos.

“Em média, cerca de 15 anos após o início dos sintomas, os pacientes acabam precisando de cadeira de rodas porque não têm mais capacidade para caminhar”, apontou Marcondes França Junior, professor assistente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “A degeneração acontece porque existe uma incapacidade dos tecidos em produzir energia na quantidade adequada para o funcionamento dos órgãos. Os órgãos que têm demanda energética maior, por exemplo, neurônios, músculo cardíaco etc. são mais vulneráveis e sofrem mais com a doença”, enfatizou.

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França Junior explicou que uma alteração cardíaca chamada miocardiopatia hipertrófica é a principal causa de morte nos pacientes. O diagnóstico é feito por meio de testes genéticos, mas o professor destacou que o tempo médio entre os primeiros sintomas e a confirmação é de oito anos.

“A AF é uma doença órfã, não tem nenhum tipo de intervenção modificadora de doença, um tratamento que pelo menos retarde a evolução. O que fazemos é tratamento voltado para reabilitação e controle de sintomas, com uma equipe multidisciplinar. Mas essa análise pela Anvisa representa um momento promissor. Acreditamos que haverá uma mudança de panorama”, completou França Junior.

O primeiro medicamento do mundo para a AF foi aprovado pela FDA (Food and Drug Administration), órgão dos EUA, em fevereiro de 2023, e, pela Comissão Europeia, órgão da União Europeia, em fevereiro deste ano.



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